A Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil– REDETRANS, fundada e registrada no ano de 2009, na cidade do Rio de Janeiro, é instituição nacional que representa as Pessoas Trans do Brasil e que se coloca como instrumento de expressão da luta pela garantia dos direitos humanos e cidadania plena de pessoas travestis e transexuais, além de outras transidentidades, contra quaisquer formas de discriminação.
É comprovado que as vítimas do bullying podem sofrer consequências psicológicas graves dessa forma de agressão, que também pode atingir as suas vítimas física ou psicologicamente. A baixa autoestima, a dificuldade de aprendizado e de socialização, a ansiedade, o medo e, em alguns casos, até a depressão, são exemplos das complicações que a prática do bullying pode causar às suas vítimas.
Acontece que aquilo que a sociedade vem discutindo nas duas últimas décadas, a respeito do bullying, foi e é até hoje uma realidade naturalizada para a nossa população. Isso porque, a sociedade, de forma hegemônica, não apenas negligencia e pune o direito da comunidade trans de viver e conviver socialmente, como também naturaliza a identificação perversa de mulheres trans e travestis com objetos sexuais, destinadas ao consumo por parte de alguns indivíduos. Estes, que em sua esmagadora maioria são de homens cisgêneros, frequentemente, dada a imaturidade psicológica e emocional que os acomete, bem como a masculinidade tóxica que alimentam como ideal, adotam posturas exteriores de aversão e crítica a mulheres trans e travestis, ao mesmo tempo em que se esforçam para reprimir o desejo que nutrem pelos corpos das nossas irmãs, que eles tanto menosprezam à luz do dia, mas que buscam ao anoitecer, rendidos pela lascívia que os consome por dentro.
A dupla sertaneja Pedro Motta e Henrique, lançou uma música transfóbica neste fim de semana. A faixa se chama “Lili” e conta a história de um homem que se sentiu enganado por descobrir que sua amada é uma travesti.
A música traz, expressões que além reduzirem a nossa população a um objeto indigno de afeto e amor, também sentenciam a comunidade trans a uma eterna existência na marginalidade e na invisibilidade. Nós temos o direito de viver e conviver socialmente, expressando afetos e vivendo relacionamentos! O direito da nossa comunidade ser respeitada na forma de nos expressar e viver a nossa identidade já foi reconhecido em diversos aspectos, inclusive pelo nosso Supremo Tribunal Federal, quando julgou a ADI 4275/DF sobre a retificação do registro civil, em março de 2018. Esse ponto também foi discutido e reforçado em outras ações constitucionais que apreciaram outros temas diretamente correlacionados à comunidade trans, inclusive o da criminalização da LGBTfobia, em junho de 2019!
No refrão da música que diz “fui enganado, me apaixonei por um travesti”, esta Rede flagra o lugar hierarquicamente superior de onde o autor se expressa para reconhecer-se na posição de quem foi enganado. Com essa frase, este homem não apenas menospreza e deslegitima a identidade feminina com que as mulheres travestis e transexuais se reconhecem, como também reafirma o seu lugar enquanto homem cisgênero transfóbico, a fim de conservar o lugar privilegiado de reconhecimento social que a sociedade lhe empresta, desde que reproduza comportamentos da masculinidade tóxica em que se afoga, como esse de se dizer “enganado”, ao descobrir que sua parceira é uma travesti.
Além disso, é preciso ressaltar que as mulheres trans e travestis vivenciam sua vida através de um universo feminino não norteado pelo órgão sexual, principalmente porque a identidade gênero e o comportamento social ditos “de homem” ou “de mulher” não estão condicionadas à genitália, mas à vivência interna de autorreconhecimento que todos os seres humanos experienciam de diferentes formas e graus. Desse modo, a frase “Depois de uma farra embriagada ela se entregou só que ela não tinha o que mulher tem”, que também foi extraída da letra da música, denuncia a cisnormatividade estrutural refletida na cultura e na forma com que a sociedade, de modo geral, enxerga as pessoas trans, em especial, as travestis e mulheres transexuais. Por causa das concepções que a cisnormatividade inspira no contexto sociocultural brasileiro, a crença de que o gênero é definido pela genitália ainda persiste, gerando, em consequência, a deslegitimação da identidade e da vivência existencial da comunidade transgênera.
O fato é que a atitude transfóbica, cissexista e machista da dupla, expressa através da música “Lili”, denuncia a ignorância a respeito da diferença entre orientação sexual e identidade de gênero, bem como de todo o panorama de exclusão social e de preconceito vivido pela nossa população, frutos de uma cultura brasileira que desconhece, deslegitima e menospreza as mulheres como um todo!
Desde que a Rede Trans deu início à catalogação de assassinatos de nossa população no Brasil, trouxemos três aspectos que diretamente se relacionam aos pontos apresentados nesta nota, quais sejam:
- O Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo;
- A maioria dos assassinatos são cometidos por homens cisgêneros que tinham relações fixas e não comerciais com mulheres trans e travestis.
- O Brasil é o país com maior acesso, via internet, de conteúdo pornográfico envolvendo pessoas trans.
É imperioso que a nossa sociedade abandone a hipocrisia, conscientize-se e se distancie de condutas e posturas como a da dupla sertaneja Pedro Motta e Henrique, que não é a primeira a refletir estas concepções errôneas sobre a nossa população, enraizadas num machismo que referenda um ideal tóxico de homem/masculinidade e a objetificação e subalternização das mulheres. A diferença entre as pessoas cis e a trans está somente na carga que cada uma dessas categorias carrega socialmente. Da mesma forma que um dia se naturalizaram as práticas de assédio e de violência contra as mulheres cisgêneras, além da concepção de que a mulher deve ser submissa ao homem, hoje ainda se naturalizam práticas transfóbicas de variadas formas contra pessoas trans, combustível direto aos assassinatos e à exclusão social que vem sendo denunciada a anos pela nossa comunidade.
Pelo respeito, cuidado e humanidade a todas as pessoas, esta Rede entende que a música e a cultura devem cumprir o seu papel de divertir, mas também de socializar e, eventualmente, conscientizar sobre questões sociais relevantes para a transformação da nossa sociedade. Por isso, é também do entendimento da Rede Trans Brasil que a música “Lili”, de Pedro Motta e Henrique, não pode ser abarcada pela proteção da liberdade de expressão artística de seus autores, já que promove a estigmatização, a violência e a exclusão da comunidade trans brasileira, que também tem direito de ser vista, acolhida e amada como qualquer outra pessoa humana.
BAIXE A NOTA NA ÍNTEGRA: